Ser casal não tem a ver com ser
família, pois esta implica a maternidade e a paternidade, sendo o filho o que
concede esta condição. Construir uma família não é fácil e muitos casais não
estão preparados para serem pais.
Esta imaturidade não corresponde
necessariamente à idade, mas no perceber-se e no aceitar-se dentro desse novo
papel paternal que exige renúncias, aceitações, sacrifícios, responsabilidades.
Vários fatores poderão contribuir para que se alcance este estágio, como, por
exemplo, uma estrutura psíquica amadurecida, que, a partir mais ou menos, dos
25 anos, proporciona aos jovens buscarem e assumirem novas responsabilidades,
casamento, trabalho, estudo, representações sociais. Mesmo assim, poderão
ocorrer fragilidades, como ciúmes da relação da mãe com o filho, por parte do
pai; ignorância ou abandono do papel de esposa, pela mãe, enfim, situações de
despreparo dispensáveis para esta tão nobre e exigente missão: a da construção
de um sujeito, de um pequeno ser que terá necessariamente que se reconhecer
como um ser presente no mundo e com vida própria através de seus pais.
Nesse processo de construção dos
filhos, os pais terão que compreender e auxiliar para que, se possível, danos
não sejam causados nesta formação psíquica. É comum que pais despreparados nem
sempre percebam, por exemplo, a importância do brinquedo, da arte e da
criatividade, tampouco de suas presenças, dos seus carinhos e da aceitação da
criança. Além disso, enfrentam mais dificuldades, ainda, quando têm que avaliar
as medidas e os limites que devem impor:
O que é proteção e o que é
superproteção? O que deixar fazer? O que proibir? Quando conversar? Quando e
como castigar ou recompensar?
As respostas a essas questões
exigem alguma compreensão. Por exemplo, a criança arteira, como nos diz Rafael
Célia (1996), demonstra interesse, curiosidade, espontaneidade, tão necessários
ao desenvolvimento da inteligência. Todos
os brinquedos são colaboradores das aprendizagens e das construções psíquicas,
pois é brincando que a criança se ajusta e compreende a realidade.
Isso nos permite conclusões muito
importantes a respeito da atividade lúdica da criança. A primeira é que ela
está na base de muitas, talvez de todas as atividades humanas, como vimos na
magia e no teatro. O que há de maravilhoso no faz de conta é a possibilidade de
transferir o acontecimento real para uma ideia que pode ser jogada no
pensamento, sem leis, sem compromissos ou riscos, que é a de pensar. Então,
neste brincar interno, a criança tem a possibilidade de fazer comparações,
arranjos e previsões que são verdadeiras hipóteses de investigação do mundo
(CÉLIA, 1996, p. 63).
Quem educa, necessita saber da
importância do brinquedo e de, como pai e mãe, também participem deste brincar,
bem como deixar brincar sozinho. Só brinca, quem resgata de sua infância, a
criança que muito brincou.
Lembro de um paciente que me
disse: “-Meu amigo queria ter um carro, eu um avião, e meus pais diziam que eu
era um louco, eu acreditei nisto e deixei de sonhar”.
Como se vê, não é nada simples
ser pai e ser mãe. Isso implica harmonia, ajustamento, coerência e muito amor
entre ambos. E o despreparo dos pais nesse quesito, pode causar danos
irreparáveis.
É no brinquedo e pelo brinquedo
que a criança se encontra, deduz, faz inferências, erra e corrige e, assim,
caminha para uma formação cidadã, um ser do coletivo, sem perder sua referencia
e individualidade próprias.
Essas considerações do e sobre o
brinquedo são apenas referências para que compreendamos o quanto necessitamos
saber sobre a evolução de uma criança. Poderíamos discorrer sobre vários outros
aspectos, mas queremos nos deter sobre o quanto podemos adoecer nossos filhos,
quando não estamos prontos para sermos pais.
Enfim, é na riqueza das
interações humanas que o ser humano se constrói.
A saúde infantil fica quase que
totalmente como se fosse de total responsabilidade dos pais. Sabemos que não se
trata apenas disso, mas de como a criança reage aos obstáculos que a ela são
impostos.
Perceber que algo não vai bem com
o filho tampouco é tarefa fácil. Quando uma criança está psiquicamente
adoecida, desencadeia uma verdadeira neurose familiar, a qual pode ser
traduzida em culpas e acusações. Descobrir a origem dos enganos paternos (falta
de preparo para a projenitura, desejos reprimidos, insatisfações com a vida
conjugal, social, econômica), pode ser proveitoso, mas, para isto, é necessário
que haja maturidade suficiente para que os pais olhem para si mesmos, num
processo de reflexão, para se descobrirem como pessoas e como pais.
Geralmente, os pais tornam-se reféns de situações
em que não sabem até onde vai a normalidade,
saúde ou a doença e a dificuldade dos filhos. Corremos o risco de
comparar nosso filho a outras crianças, negando sua individualidade e negando,
muitas vezes, que estamos comparando nosso filho real ao filho de nosso desejo.
Todas as crianças terão dificuldades,
maiores ou menores para se adaptarem a exigências,
no entanto, percebemos que algumas não aceitam as frustrações naturais,
desenvolvendo sintomas, que poderão significar doenças.
Não raramente, recebemos crianças
em nossos consultórios, com pais ansiosos para saberem se o comportamento de
seu filho é normal, com consternações como estas: “ – Meu filho ainda não fala e tem 2 anos”. “ – Na escola, a professora
diz que ele perturba”. “ – Meu filho não obedece ninguém”. “ – Muitas vezes,
deixamos fazer o que quer porque não sabemos lidar com suas birras e agressões”.
Antes mesmo de qualquer hipótese diagnostica,
porém, há que ver em que contexto esta criança está se desenvolvendo e como os
pais estão conduzindo seus papéis de afeto, autoridade, exigência, segurança,
equilíbrio e compreensão; se compreendem o desenvolvimento de uma criança, ou
se realmente estamos diante de um sofrimento psíquico, de uma criança difícil. Pois
não é raro acontecer de a criança estar apresentando apenas o sintoma das
perturbações e neuroses familiares. Nesse caso, há que saber se estes pais são capazes
de reverem a si mesmos nesta relação.
Ousamos dizer que dificilmente a
criança adoece emocionalmente se seus pais também não estiverem adoecidos. Difícil
será para estes pais não se sentirem julgados e desvelados, assumindo a si
mesmos. Sentimentos contraditórios se instalam: de um lado o amor e de outro o
resentimento e a frustração.
Quando se instala uma doença psíquica
numa criança, não há duvidas de que os pais também estão adoecidos. Sendo assim,
independente dos motivos que causaram a doença do filho, sempre subiste a
presença do sentimento de culpa pela condição da criança.
Como diz Freud, deve prevalecer,
neste momento, o bom senso, a consciência.
Muitas vezes, os pais também
adiam o tratamento de uma criança, não somente porque têm dificuldade em lidar
com a situação. Como os sintomas nem sempre são perturbadores ou reconhecidos
(crianças extremamente silenciosas, sem amigos, sem exigências, com alguns
tiques ou manias), são difíceis d serem percebidos como sofrimentos. Crianças rebeldes
e opositoras conduzem mais rapidamente à tomada de atitudes e à busca de
tratamento e ajuda.
A verdade é que todos nós
desejamos filhos sadios e sabemos o quanto somos participantes deste processo. A
não aceitação dos pais em receber ajuda e entender que seu filho necessita de tratamento, leva a uma situação crônica e irreversível,
comprometendo o futuro da criança e da família.
É de conhecimento popular o
seguinte drama contado como lição aos pais:
Meu filho está doente.
Hoje, adulto, muitas vezes, não tem definições nem projetos. Continua não tolerando
frustrações, e vejo que não o ensinamos. Demos a ele muita liberdade. Não exigimos,
não cobramos. Hoje não tolera cobrança, seja de quem for. Seu caráter é frágil
e duvidoso. Causamos um grande mal ao nosso filho.
Quando neném, o
protegíamos de tudo e de todos. Foi dormir em seu próprio quarto quando já
tinha alguma idade, tendo dificuldade em se acostumar a isto cm muito medo. A comida
era dada por nós, não queríamos que se sujasse. Quando brigava, por algum
brinquedo ou espaço, prontamente o defendíamos e ele nunca era o culpado. O que
era certo ou não... bem, poucas vezeslhe era exigido e quando um de nós ousava
fazer, logo o outro entrava em sua defesa. Ele era o rei. Não percebíamos que
estas atitudes escondiam nossa rejeição à criança difícil que ele era, nem
tampouco o quanto isso o estava tornando frágil perante a vida. Hoje, sem
estudo e sem trabalho, continuávamos nossa missão de protegê-lo, de sustentá-lo.
Às vezes, luta por algum
querer ainda que ilegítimo, mas, como lutou, justifica este querer como eu
fosse algo de muito valor, como se tivesse sido conquistado com grande trabalho
e esforço. Meu filho está doente. Nós fomos o vírus. Difícil admitir que se
trata de uma doença crônica e de difícil reversão. Mas toda e qualquer doença seja física, seja psíquica,
mental, pode e deve ser tratada com especialistas adequados.
Hoje só nos resta
continuar protegendo-o, como se ele fosse incapaz perante a própria vida e/ou
procurar o tratamento adequado.
Chegar a esta consciência é
angustiante e doloroso, o que leva, por vezes, à negação e à ilusão de que tudo
poderá ser revertido.
Quando reconhecemos que a
superproteção sempre é adoecedora, lembramos também aos pais das crianças
portadoras de limitações que o mesmo se aplica a elas. Protegidas, não se
desenvolverão, não se reconhecerão como capazes. Superproteção sempre é e será
limitante. Todos nós queremos o máximo no desenvolvimento de nossos filhos e
isso exige esforço e trabalho, exigências.
Um olhar sobre o quanto
somos capazes de esforços e sacrifícios conosco
dará a dimensão do quanto podemos e devemos exigir do outro, considerando-o um
ser capaz.
Para o reconhecimento do filho
como sujeito, portador de sofrimentos, angustias e faltas, é necessário a
castração dos pais. Muitos autores nos propõem a necessidade e os pais verem o
filho como um semelhante, com inteligência e entendimento das coisas da vida, uma
criança dotada de desejos. Perigo há quando o veem como um corpo de
necessidades, mal regrado e falho, como se o tempo pudesse resolver e determinar
todo o futuro.
Sem dúvida, nossas crianças são os
nossos herdeiros, de tudo o que fomos e somos, de tudo o que pensamos, de como
construímos nossa adaptação social, de nossos desejos e da autorização de seus próprios
desejos.
Winnicott (1993, p. 71) afirma que
cada bebê e cada criança cria a família da forma como respondem aos estímulos e
se apresentam diante das características do meio externo e interno.
E isto depende de um ambiente
suficientemente bom, mesmo diante de um bebê que possa apresentar-se difícil, o
qual supõe a capacidade de os pais tolerarem e lidarem com a situação, com o
distúrbio. Isso supõe pais maduros, que se amem e se completem; pais capazes de
amar incondicionalmente o filho, proporcionando o melhor para seu
desenvolvimento; pais que reconhecem suas culpas e a capacidade de lidar com
elas; pais que estejam prontos para assumir toda e qualquer adversidade, sem
adoecer.
Em muitos escritos, Freud aponta
como fundamental o bom senso dos pais. Vamos lembrar do que foi falado no
início deste capitulo: antes da família, existe um casal que deve ser pleno de
compartilhamento, confiança e amor; que deve continuar a se cultivar como tal,
tendo seus espaços de intimidades e trocas.
Por fim, vale muito a pena
lembrar da participação da escola na saúde
de seus educadores e sua família. Professores
bem preparados são grandes auxiliares na percepção dos pais sobre suas
condutas, pois cooperam nos encaminhamentos terapêuticos; promovem reuniões desenvolvendo
temas pertinentes ao papel dos pais; auxiliam na mudança; levam à análise de
contextos e ensinam regras fundamentais.
Professores mal preparados não ouvem
seus alunos; não auxiliam o contexto, não cooperam com a saúde das crianças; não
se dão conta das diferenças entre crianças sadias, espertas, curiosas e
adoecidas por problemas domésticos e mentais.
Em certa ocasião, vem a lembrança
de uma estagiária da Educação Especial. Seus alunos, com quase nenhuma higiene,
mais falavam do que frequentavam a aula. Logo, questionamos sobre como viviam
as famílias e percebemos que, além de extremamente pobres, não tinham qualquer
estrutura, nem água, nem esgoto, nem alimento.
De pronto, conversamos sobre como
a comunidade poderia cooperar com as mudanças e fizemos apontamentos. A prefeitura
instalou luz e água. O comércio entregou roupas, bacias, baldes e panelas... a
escola abriu um espaço de aprendizagem para as mães, que passaram a vir à
instituição com seus filhos para aprender a ler, a fazer bolos, a fazer tricô,
costura, com a ajuda de senhoras da comunidade.
Não é necessário dizer das
grandes transformações que se operam. Crianças rebaixadas, psicotizadas,
encontraram um sentido para sua existência. Mães se valorizaram e valorizaram seus filhos, tornando-se
pessoas melhores para suas famílias.
Este foi apenas um começo para
aquela comunidade, antes tão abandonada, mas que serve, aqui, para mostrar a importância
da escola na vida das famílias.
Não somos os culpados por todas
as dificuldades dos nossos filhos, mas somos os responsáveis pelo seu futuro.
E este futuro sim necessita ser construído
a partir de intensas reflexões sobre como estamos conduzindo a saúde física e
mental de nossa família.
Albino Júlio Sciesleski
Médico Psiquiatra
Maria Potiens Zilio
Psicopedagoga